Deteção precoce do Cancro Cutâneo nos Cuidados de Saúde Primários
Leia o artigo de opinião da autoria de Mariana Mira, da USF Samora Correia, no ACES-Estuario do Tejo, acerca da bolsa de investigação clínica em Oncologia nos Cuidados de Saúde Primários, que recebeu a 5 de julho de 2022, pelo trabalho “Deteção Precoce do Cancro Cutâneo nos Cuidados de Saúde Primários”. Saiba mais na edição 134 do Jornal Médico.
O cancro cutâneo é um dos tipos de cancro com maior crescimento nos últimos anos, constituindo um problema de Saúde Pública a nível mundial, principalmente na sociedade ocidental[1-2]. Constitui atualmente a neoplasia maligna mais frequente na população europeia. É classificado em dois grandes grupos: os melanomas malignos (MM, os mais agressivos e letais) e os não-melanomas, que incluem o carcinoma espino-celular (CEC, agressivo e de rápida evolução) e o carcinoma basocelular (CBC, baixa malignidade e evolução lenta)[2].
Em Portugal, são diagnosticados anualmente cerca de 12.000 novos casos de cancro da pele (8-10 % serão MM; 25 % CEC; 65 % CBC), o que corresponde a um terço da totalidade dos cancros no nosso país e afetando uma em cada sete pessoas ao longo da vida[2]. Estima-se que os vários tipos de cancro cutâneo conduzem a mais de 400 mortes anuais, a maioria causada pelo MM (~70 %), o tipo de cancro de pele mais grave e letal quando não detetado precocemente[2].
Travar a tendência de aumento do cancro da pele é, portanto, fundamental para a Saúde Pública e para a saúde individual de cada um. Por um lado, a Associação Portuguesa de Cancro Cutâneo (APCC) alerta para o facto de 90 % das mortes por cancro de pele serem evitáveis, sublinhando que os custos em tratamento para os serviços de saúde rondam os €20 milhões por ano[3]. Por outro lado, a pandemia limitou a campanha do Euromelanoma[4] – uma ação conjunta da APCC e da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia (SPDV), com a chancela da Direcção-Geral da Saúde – impe[1]dindo as ações de observação e rastreio presencial.
De acordo com o Dr. Ricardo Vieira (Secretário geral da APCC) “temos de arranjar mecanismos para que estes cancros sejam de facto evitados. O diagnóstico precoce, numa primeira abordagem, e o controlo dos fatores de risco são essenciais”[3]. Alguns indivíduos têm risco maior do que outros para o aparecimento de MM, nomeadamente os de pele clara, sardenta, ruivos e loiros; indivíduos com muitos nevos (fototipos 1 e 2); exposição prolongada e irregular ao sol, em especial na infância ou adolescência, bem como exposição a solários ou em atividades agrícolas continuadas (como ainda é comum na população onde se insere a nossa USF); história de queimaduras solares; e antecedentes patológicos e/ou familiares de cancro de pele[5-7].
Neste sentido, as campanhas de rastreio do cancro cutâneo são habitualmente dirigidas a estes indivíduos com maior risco para o aparecimento de lesões malignas da pele. A imunossupressão é também um importante fator adicional de risco para a indução de cancro de pele, como evidenciado por estudos em imunossuprimidos com cancro cutâneo, pelo que deveremos estar igualmente atentos ao aparecimento de lesões suspeitas nestes doentes[8-9]. A própria radiação UV é imunossupressora, para além do seu carácter mutagénico[9-10]. Não obstante, os indivíduos que auto-detetem nevos com características suspeitas a partir das campanhas de educação para a saúde, baseadas no ensino da metodologia ABCDE (designadamente, entendem- -se por características suspeitas: Assimetria; Bordos [ir[1]regulares, mal-definidos]; Cor [escurecimento, perda de cor, múltiplas cores – como azul, vermelho, branco, violáceo, cinzento]; Diâmetro superior a 6 mm; e Evolução [elevação e mudança da lesão])[3, 6, 11], devem igualmente fazer parte do rastreio precoce do cancro cutâneo, mesmo que não tenham fatores de risco.
É também de extrema importância estar atento ao aparecimento de lesões pré-cancerosas, sendo as mais frequentes as queratoses actínicas (precursoras do CEC) e as leucoplasias[12-13]. Os nevos atípicos, sobretudo na síndrome de nevos atípicos ou de aparecimento recente, os lentigos atípicos e os nevos congénitos atípicos ou de grandes dimensões, constituem sinais de risco acrescido para o MM[5, 7, 14-15]. Para o rastreio e deteção do cancro cutâneo é comum recorrer-se à dermatoscopia.
Esta técnica não invasiva permite o reconhecimento de lesões não reconhecíveis a olho nu, possibilitando um incremento da precisão diagnóstica até 35 %[16-17]. A aplicação clínica da mnemónica internacional ABCDE referida acima pode melhorar a deteção de lesões suspeitas com uma sensibilidade de 92 a 100 % e especificidade de 98 % para a deteção de MM[11]. Poderá ser adicionalmente aplicada uma lista de sete critérios, cuja sensibilidade e especificidade rondam, respetiva[1]mente, 79 a 100 % e 30 a 37 %[11]. Uma vez que os CSP são a “porta de entrada” do utente no Serviço Nacional de Saúde, os MF têm uma posição privilegiada na deteção precoce de lesões pré-malignas e malignas, podendo, deste modo, contribuir para a redução da morbilidade e mortalidade do cancro cutâneo e para a melhoria da qualidade de vida dos doentes. Para além disso, os CSP assumem já um papel fundamental na prevenção primária, promovendo mudanças de comportamento por forma a reduzir os fatores de risco modificáveis nesta doença, nomeadamente a redução da exposição solar de risco e a utilização fotoproteção de forma adequada; e devem continuar a atuar na prevenção secundá[1]ria estimulando a realização do auto-exame da pele mensal, medida que se tem revelado também eficaz na deteção precoce de cancro cutâneo[18-19].
Não obstante, têm sido realizados até à data pouco estudos sobre a aplicabilidade do rastreio de cancro cutâneo nos CSP e os consequentes resultados deste rastreio em termos de deteção precoce e outcomes de sobrevida ao diagnóstico de cancro cutâneo, bem como dos custos envolvidos; mais ainda, ensaios clínicos randomizados nesta área são inexistentes. Um dos maiores estudos realizados (595 799 indivíduos rastreados), publicado recentemente, teve lugar na Universidade de Pittsburgh (EUA) entre 2014 e 2018[20] , onde os investigadores destacam que os indivíduos incluídos no rastreio tiveram maior probabilidade de ser diagnosticados com MM in situ (incidência, 30.4 vs. 14.4; hazard ratio [HR], 2.6; 95 % CI, 2.1-3.1) (P<.001) ou MM invasivo de fina espessura (≤1 mm) (incidência, 24.5 vs. 16.1; HR, 1.8; 95 % CI, 1.5-2.2) (P><.001) em comparação com indivíduos não rastreados (dados ajustados para a mesma idade, género e raça). Por outro lado, e apesar de não atingir significância estatística, as taxas de MM espesso (>2 mm e >4 mm) foram mais elevadas nos indivíduos não rastreados em comparação com os rastreados (3.3 vs. 2.7 casos por 100000 pessoas-ano)[20].
Outro estudo igualmente recente, realizado pela Universidade de Missouri (EUA) durante 2 anos, debruçou-se sobre os fatores facilitadores e as barreiras para a implementação do rastreio de MM nos CSP através de sessões de telementoring/telemedicina (projeto Melanoma ECHO-Extension for Community Healthcare Outcomes) [21]. Os investigadores concluíram que à medida que o estudo progrediu os médicos foram adquirindo cada vez mais skills práticos e ganhando confiança no rastreio e diagnóstico de lesões cutâneas; e que as principais barreiras encontradas foram a falta de suporte de administrativos e enfermagem, bem como a falta de tempo[21]. Ambos os estudos sugerem que implementar o rastreio para o cancro de pele nos CSP pode conduzir à deteção precoce desta patologia, levando a melhores outcomes clínicos, mas também ao seu sobrediagnóstico[20]; e que sessões clínicas/telemedicina multidisciplinares são boas ferramentas para o desenvolvimento de skills de rastreio dermatológico e empowerment dos médicos ao nível dos CSP[21]. Uma revisão baseada na evidência publicada em 2020[22], mostrou que o rastreio do cancro cutâneo por inspeção visual realizado por médicos dos CSP apresenta 40 % de sensibilidade e 86 % de especificidade comparado com 49 % e 98 %, respetivamente, se realiza[1]do por dermatologistas ou cirurgiões plásticos. Da[1]dos deste estudo, indicam que o rastreio do cancro cutâneo por inspeção visual nos CSP está associado a um número elevado de casos falsos-positivos da seguinte forma: 28 biópsias por cada caso de MM detetado; 9 a 10 biópsias por cada CBC; 28 a 56 biopsias por cada CEC; sendo estes valores mais altos para população feminina do que para a masculina.
Este rastreio por inspeção visual nos CSP levou, no geral, a um aumento de 41 % de deteção de cancro cutâneo, mas sem impacto confirmado na mortalidade por MM, tendo sido detetados mais MM de fina espessura[22]. Por último, os autores concluem que a taxa de falsos-positivos (e a consequente redução no número de biópsias realizadas), bem como o impacto na deteção precoce do cancro cutâneo talvez sejam melhorados se forem aplicadas estratégias de rastreio baseadas na dermatoscopia[22]. Em Portugal, para além da campanha do Euromelanoma[4], existe apenas um estudo transversal publicado até à data sobre o rastreio do cancro da pele nos CSP[23], tendo intervencionados um total de 282 utentes, ao longo de 22 meses (Julho/2008 a Maio/2010, no o Centro de Saúde de Amarante [USF S. Gonçalo]) com recurso a procedimentos invasivos mínimos para de exérese de lesões cutâneas, submetidas a exame histológico.
Foram identificadas as seguintes lesões pré-cancerosas: queratose solar actínica (8 casos), cornocutâneo (2 casos), lesão induzida por HPV (1 caso), nevomelanocítico atípico (7 casos) e nevo melanocítico congénito (2 casos). Além disso, encontraram-se as seguintes lesões cancerosas: CEC in situ (1 caso), CBC (3 casos) e MM (3 casos)[23]. Este estudo, focado na prática de pequena cirurgia nos CSP, demonstrou que é possível estender a deteção precoce e o tratamento de neoplasias cutâneas aos CSP, prática esta muito generalizada na Austrália, Espanha e no Reino Unido[23]. Para além deste estudo, existe ainda um estudo-piloto transversal (2018-2019) apresentado em 2022 nas Jornadas Patient Care[24], onde foi realizado um rastreio aos utentes de 57 anos da USF em questão (n=341), tendo sido referenciados à Dermatologia um total de 17 utentes, apresentando 2 casos de MM, 3 casos de CBC e 17 lesões pré-malignas. Este estudo permitiu ainda diagnósticos de novo de outras patologias cutâneas, nomeadamente neurofibromatose tipo 1 (n=1), Psoríase (n=3), Dermatite de Contacto (n=1), entre outras (n=24), demonstrando a pertinência do estudo e a importância da MGF na avaliação sistemática e organizada da pele[24].
Depois deste enquadramento, passo a explicar o projeto. Trata-se da implementação das técnicas de dermatoscopia para detetar lesões cutâneas com sinais suspeitos de malignidade, pelos 6 médicos envolvidos no projeto aos seus doentes com 18 ou mais anos de idade, selecionados de forma aleatória. Na primeira parte do projeto será adquirido o material necessário e será feita formação em dermatoscopia aos Médicos de Família que participam. Na parte seguinte do projeto, serão selecionados 3 doentes por dia aos quais serão aplicadas as técnicas de dermatoscopia para deteção precoce de lesões com sinais suspeitos de malignidade. Esta parte do trabalho terá uma duração aproximada de 9 meses. Na parte final do projeto todos os dados recolhidos serão analisados, respeitando as regras da proteção de dados, de modo a resultar num trabalho de investigação que será depois apresentado em congressos nacionais e/ou internacionais. É nosso objetivo também a divulgação deste projeto e dos respetivos resultados obtidos, para que se possa melhorar a deteção precoce do cancro da pele ao maior número possível de doentes.
REFERÊNCIAS:
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- ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DO CANCRO CUTÂNEO. Como reconhecer o Cancro da Pele. Porto. [consultado em 17-01- 2022]. Disponível em https://www.apcancrocutaneo.pt/index.php/prevencao/como-reconhecer;
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