Venereologia: o panorama nacional das doenças com origem bacteriana

No mais recente Congresso da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, Pedro Andrade, especialista de Dermatologia, no Hospital Pedro Hispano,  pertenceu a uma mesa de palestrantes na sessão designada por “Novidades em Dermatologia e Venerologia”, focando-se nas atualizações das guidelines referentes ao tratamento das doenças sexualmente transmissíveis.

“A novidade que todos gostaríamos de ouvir, ainda não chegou”, lamentou Pedro Andrade no arranque da sua comunicação. Como alertou, verifica-se um aumento da incidência das doenças sexualmente transmissíveis, principalmente as de origem bacteriana, “sendo este aumento mais marcado durante o período da pandemia”, afirmou o especialista em Dermatovenereologia.

Como faz notar Pedro Andrade, para dar exemplo do referido aumento, no “caso da sífilis congénita, que no espaço europeu parecia controlada, os números de infeções continuam a ser alarmantes” (Preliminary data show 2.5 million reported cases of chlamydia, gonorrhea, and syphilis in 2021).

Focando a sua palestra nas diferentes patologias, o especialista começou por aquela que se tornou na doença sexualmente transmissível “mais falada recentemente”, ou seja, a monkeypox. Provocada por um vírus do género orthopoxvírus, parente do vírus da varíola, descrito na década de 50 e cuja transmissibilidade aos humanos é conhecido desde os anos 1970. Porém”, advertiu, “até recentemente, as infeções eram pontuais, tendo nos últimos anos, afetado os humanos em números e extensões geográficas crescentes chegando a atingir proporções globais desde maio de 2022”.

Como contextualizou Pedro Andrade, não há ainda certezas em relação à identificação do reservatório original, “com as evidências disponíveis a apontar para o esquilo ou rato africanos, embora o vírus já tenha sido detetado em vários mamíferos, incluindo os primatas”. Detalhando que há duas variantes clássicas do monkeypox: a variante da bacia do Congo, considerada a mais agressiva e com maior potencial de transmissibilidade e mortalidade; e a variante da África Ocidental, considerada menos invasiva, de menor transmissibilidade e mais inócua. Segundo a descrição de Pedro Andrade, “o aspeto típico das lesões cutâneas provocadas por monkeypox são as pápulas brancas e umbilicadas, originando úlcera ou crosta central semelhante a eritema e edema marcado com atingimento preferencial da zona genital, perianal e perioral. Tipicamente, observam-se 15 a 25 lesões muito dolorosas”.

A respeito dos registos em território europeu, “os primeiros casos verificaram-se em Portugal e no Reino Unido, sendo creditado o trabalho de Cândida Fernandes pelo extenso trabalho pioneiro reconhecido sobre os primeiros casos detetados em Portugal, que originou uma norma de orientação clínica e laboratorial por parte da DGS”, recordou o especialista.

Aludindo aos dados recentes recolhidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS), o dermatovenereologista realçou que “durante a pandemia, revelaram uma grande disseminação inicial, que afetou sobretudo homens jovens que têm sexo com homens, mas com tendência decrescente. Em relação à distribuição geográfica, as áreas metropolitanas e urbanas de Lisboa e Porto foram as mais afetadas”.

A DGS emitiu normas relativas à vacinação contra a monkeypox, “com duas vacinas de vírus disponíveis, de vírus atenuado, que inicialmente foram apenas indicadas para indivíduos em risco de contacto direto com indivíduos infetados, mas a indicação foi progressivamente aprovada para outros grupos de risco como indivíduos com VIH ou trabalhadores do sexo”, lembrou Pedro Andrade.

E a respeito da vacinação contra o monkeypox em Portugal, especialista informou que esta decorre de forma lenta, devido à escassez significativa de vacinas disponíveis e, por esse motivo, a DGS recomenda, na sequência das recomendações emitidas pela entidades europeia e norte-americanas, EMA e FDA, respetivamente, “a utilização das vacinas por via intradérmica, em vez de forma subcutânea como preconizado, o que permite usar uma quantidade inferior do líquido de inoculação e, assim, vacinar mais indivíduos, sem comprometer a eficácia”, esclareceu o dermatovenereologista.

“Paralelamente”, completou, “também têm sido estudados muitos fármacos para o tratamento clínico da doença, sendo o único aprovado pela EMA o tecovirimat cuja ação consiste na inibição da proteína VP37 da cápsula do orthopoxvírus”.

Este medicamente tem indicação para tratamento de doença grave por infeção com monkeypox e efeitos adversos graves devidos à vacinação.

O comportamento do surto a nível mundial é semelhante ao que se verifica a nível nacional, ou seja, há uma tendência decrescente, com focos de infeção confinados ao continente americano. Conforme mostram os dados de um estudo recente, o palestrante concluiu que “provavelmente, a doença vai continuar a transmitir-se a médio e longo prazo devido à sua disseminação geográfica e dos seus reservatórios que, por sua vez, apresentam um risco real de contacto e infeção dos humanos” (Filipe Vieira Santos de Abreu, et al. Serological Evidence
of Orthopoxvirus Infection in Neotropical Primates in Brazil. Pathogens. 2022).

Recomendações terapêuticas para as doenças sexualmente transmissíveis

No capítulo das atualizações das guidelines internacionais, Pedro Andrade, destacou as orientações emitidas pela International Union Against Sexually Transmitted Infections (IUSTI) relativas às infeções do Mycoplasma genitalium (2021 European guidelines on the management of Mycoplasma genitalium infections).

Comparativamente às guidelines anteriores, estas atualizações acrescentaram a recomendação para a “testagem ativa do Mycoplasma genitalium apenas em indivíduos sintomáticos”, notou Pedro Andrade, justificando a inclusão desta recomendação perante o aumento da resistência desta bactéria ao antimicrobiano azitromicina. Mas, também, devido ao facto da infeção por Mycoplasma genitaliu, não estar associada a complicações severas quando assintomática”.

A recomendação da IUSTI a respeito da gestão das proctites, proctocolities e enterites provocadas por agentes de transmissão sexual foi outras das guidelines (2021 European Guidelines on the management of proctitis, proctocolitis and enteritis caused by sexualy transmissible pathogens) destacadas por Pedro Andrade. No documento da entidade emissora, a Shigella sonnei é referida como “um agente infecioso com potencial de transmissibilidade sexual crescente, sobretudo em homens que têm sexo com homens, por via oroanal. A tendência crescente destas infeções ganha relevância devido ao aumento das resistências da Shigella sonnei a um conjunto de antimicrobianos, desde a ciprofloxacina e a azitromicina até às cefalosporinas de terceira geração”.

A referida recomendação levou à identificação de algumas situações para as quais importa alertar, nomeadamente o aumento de incidência de proctites por Lymphogranuloma venereum entre homens que fazem sexo com homens VIH negativos. Assim como, para a necessidade de pesquisar Mycoplasma genitalium em indivíduos com proctite sintomática quando o estudo laboratorial for negativo e a consideração de uma proctite traumática em indivíduos com proctites sintomáticas sem agente identificado em doentes sexualmente ativos.

O especialista em Dermatologia deixou ainda um breve comentário as guidelines da IUSTI sobre patologias vulvares (2021 European Guidelines for the management of vulval conditions), destacando algumas notas sobre psoríase genital, em particular sobre “a identificação das escalas de gravidade clínica e sintomática, os tratamentos biológicos como alternativa válida para esta doença e a definição de critérios de diagnóstico histológicos e clínicos para o líquen plano vulvar erosivo”.

A revisão sistemática das alternativas terapêuticas disponíveis para tratar a vulvodinia pode ser considerada umas das atualizações mais relevantes. Tendo a IUSTI concluído que “a maioria dos tratamentos, orais e tópicos, são pouco eficazes ou têm escassez de evidência científica a suportar o seu uso”. “Contrariamente”, assinalou o palestrante, “as terapias físicas de reabilitação do pavimento muscular pélvico e alterações de estilo de vida parecem ser mais eficazes e são recomendadas em primeira linha”.

Recomendações atualizadas do CDC

Num segundo momento da sua intervenção, Pedro Andrade passou em revista algumas das guidelines atualizadas do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), em 21021, (STI Treatment Guidelines), das quais se podem destacar orientações 1) para o tratamento de Neisseria gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, e Trichomonas vaginalis; 2) adição de metronidazol ao tratamento recomendado para doenças inflamatórias pélvicas; 3) opções de tratamento alternativo para vaginose bacteriana; 4) controlo da infeção por Mycoplasma genitalium; 5) recomendações de vacinas contra o papilomavírus humano e mensagens de aconselhamento; 6) fatores de risco alargados para testes de sífilis entre mulheres grávidas; 7) testes únicos para a infeção pela hepatite C; 8) avaliação de homens que têm relações sexuais com homens após agressão sexual; e 9) testes em duas etapas para diagnóstico serológico do vírus do herpes simples genital.

Focando em particular o tratamento do Mycoplasma genitalium, que vem recomendado nas guidelines do CDC (tratamento inicial com doxiciclina durante sete dias seguido de tratamento com moxifloxacina) o especialista frisou que “é completamente distinto do que vem recomendado a nível europeu (IUSTI), que mantém a recomendação da azitromicina nas infeções mais complicadas”.

Por fim, Pedro Andrade alertou para os “dados europeus do ECDC segundo os quais existe uma resistência a crescente da Neisseria gonorreia contra a ciprofloxacina e à azitromicina, mas mantêm sensibilidade em relação às cefalosporinas, o que poderá levar à suspensão da azitromicina em território europeu”.